Brasília dia a dia

O real e o imaginário misturados numa narrativa visual e ficcional do cotidiano das ruas da cidade. São os mesmos elementos que marcam a primeira impressão de Clarice Lispector sobre a capital, registrada na crônica Brasília: 1962.

O contato abrupto da escritora com as ruas vazias e a arquitetura inusitada a céu aberto revela a existência de matérias surrealistas como a "paisagem da insônia" e as "estátuas invisíveis".

Os registros começaram em outubro de 2009 e foram concluídos na noite das comemorações dos 50 anos da capital, em 21 de abril de 2010, como mostram as últimas imagens (primeiras desta página).

O projeto esteve em exposição na Livraria Cultura do shopping Casa Park entre os dias 22 de junho e 11 de julho de 2010.  

Aqueles que ficaram

Brasília, dia 22 de abril.

A Última Janela

Brasília, dia 21 de abril. No meio do Planalto Central, no campo do Eixo Monumental, um cinematógrafo voador projetou a porta de uma nova percepção. Todos os brasiliários foram chamados para a transmutação. A noite foi de grande movimento em direção à passagem luminosa. Um homem apareceu e contou o início da história, falou da construção, das chacinas e do sonho, mas nada comentou sobre a antiga civilização. Era o segredo, como já estava previsto para o juízo final.

O Céu na Terra

Brasília, dia 9 de abril. Por dias seguidos percebe-se algum tremor, algum ruído, e então as cores quentes tomam o céu. Ela, que um dia pousou entre os ministérios, vai decolar pra sempre antes do fim de abril. 

Eles não podem ver

Brasília, dia 1° de abril.

Seres da Natureza

Brasília, dia 30 de março. Brasília é concreto e é cerrado. Eis o paradoxo do planalto central. No centro a moderna civilização. No entorno a vida primitiva dos seres da natureza. E a harmonia se equilibra em pontas de cristais submersos.   

Longe na Memória

Brasília, dia 29 de março.

De Passagem

Brasília, dia 27 de março. Aterrissou no Plano Piloto da capital às 11 horas. Bom dia, muita chuva, e por lá, calor abafado, sabe como é, blá, blá, blá, negócio fechado. Às 4 da tarde esperava a chuva passar olhando o Museu Nacional pela janela. Cinza, vento, relâmpagos, trovões. Acabou a luz, acabou o telefone. Mas esse temporal passa hoje? Pingos. Pingos. Pingos. Parou a chuva. Corre e pega um lugar na Asa Sul. A cidade decola e leva o visitante embora.

Dor da Noite

Brasília, dia 25 de março. E ela se agarra na gente como se a gente fosse o alimento necessário a sua sobrevivência nessa cidade. E ela cerca a gente. E ela apaga as luzes dos postes, abafa os sons da rua e derrama um temporal de repente. E a gente se encolhe, se assusta, olha pros lados desconfiado, anda rápido. Mas finalmente a gente sente o abraço desesperado da noite como fazem aqueles vampiros que não controlam sua pulsão pelo sangue dos outros.