Cálice

Brasília, dia 6 de dezembro. De veias abertas e sangue correndo. Até que a cidade o esqueça.


Pedras e Fogo


 
Brasília, dia 5 de dezembro. Gabo chegou da Costa Rica na noite anterior. Mas não é a primeira vez que vem ao Brasil. Casou com uma menina de Olinda e trabalha nos sinais das capitais pra sustentar a filha. Conhece o fogo. Só acende as chamas quando o sol se põe. Dos carros as pessoas buzinam pra dar dinheiro. Um menino de rua veio pedir no mesmo sinal. Agora as pessoas fecham os vidros. As chamas se apagam. O menino quer dinheiro. Precisa do brilho do crack. O vendedor se esconde no estacionamento ao lado.

Operários e Espaçonaves

Brasília, dia 4 de dezembro. Primeiros raios de sol iluminam operários nas crateras da lua. Estão ali desde a escuridão. Entre a cúpula da Catedral e o anel do Museu Nacional eles esperam o primeiro ônibus que partirá para as novas construções da cidade-monumento.

O Guardião

Brasília, dia 3 de dezembro. O sol surpreende o último Brasiliário noturno. A noite se foi e ele demora a se recolher.

Amuletos

Brasília, dia 2 de dezembro. Tá relampiano. Vai pra rua da cidade. Exibe seu amuleto no corredor dos carros.

Escondidos

Brasília, dia 1° de dezembro. Planalto Central volta à velha rotina com a mudança do tempo. Na cidade se procura e se encontra, e se perde. Alguns se escondem na sua invisibilidade marginal, rastejando por baixo das pedras portuguesas, soterrando suas estruturas por dentro das artérias quentes da cidade, sentindo por cima os passos pesados da sociedade. Na cidade há uma guerra surda entre Brasiliários que pegam sua comida do lixo e os que pegam sua comida da mesa.

Três Meninas de Brasília

Brasília, dia 30 de novembro. Desfile em moderna arquitetura. O corpo tem o movimento do Cerrado em dias de chuva, de nuvens gigantes e pretas que dançam coreografias lentas.

A Face Oculta

Brasília, dia 29 de novembro. Brasiliários se protegem da luz em seminvisibilidade. O sol queima pedras portuguesas e abre artérias azuladas no chão da cidade.

A Evolução

Brasília, dia 28 de novembro. A chuva já não assusta mais. Roupas molhadas, calçados pesados. Ficou decidido que ninguém sairia na rua protegido. O guarda-chuva foi proibido. Assim como se adaptaram ao sol, os Brasiliários começam a se adaptar à agua.

Na Rotina

Brasília, dia 27 de novembro. Alguns dias são mais iguais do que outros. Quantas vezes neste ano um Brasiliário terá atravessado a mesma faixa de pedestre?

Estampado

Brasília, dia 26 de novembro. Em noites de chuva ela circula pelo Setor de Clubes Norte, com guarda-chuva estampado, iluminando a escuridão da cidade.

O Escuro das Horas

Brasília, dia 25 de novembro. Neste lado da cidade, onde não há residências, só a obrigação do trabalho, as pessoas têm pressa. Passam correndo por quarteirões que não são de ninguém, escapando às ruas que, dizem, já colocaram raízes nos pés de alguém.



Metamorfoses

Brasília, dia 24 de novembro de 2009. Do alto do Setor Comercial Sul, as pessoas têm cabeça de guarda-chuva e pernas pequenas. Mas isso é só quando chove.

O Encarregado

Brasília, dia 23 de novembro. Segunda-feira, 23h45. O Encarregado foi finalmente incorporado à paisagem. A meio caminho entre o Hospital Sarah Kubitschek e o Pátio Brasil, sua silhueta se estendeu pela cena urbana e pelo semáforo, que era o seu ponto. Não cobrará mais os impostos da opressão. Brasiliários não conseguem mais enxergá-lo. Agora a chuva é sua, toda sua. A noite toda. Impiedosamente.